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18 de set. de 2010

Com açúcar, com afeto.

( Ao som de Nara Leão e Chico Buarque "Com açúcar, com afeto")



Ele olhou nos seus olhos decididamente:

- A nossa relação está morta e você sabe disso melhor do que eu.

Arrumou o nó da gravata cinza e saiu sem olhar para trás, sem sequer um olhar de despedida.
Ela não se mexeu durante muito tempo. Ficou ali, tentando entender o que ainda não havia entendido.
Eram 9 horas da noite e tocava no rádio:

Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa, qual o quê!
Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa...

Seu cérebro latejava no ritmo da música. Pela primeira vez ela sentiu algo, ódio.
Sabia queria se vingar, não por que o amava, na verdade ela não o amava, mas precisava de alguém por perto, precisava saber que, pelo menos alguém vivia do seu lado.
Ela não suportava surpresas, vingaria-se da surpresa. Parece falso dito assim, mas era a mais pura verdade: se tivesse qualquer desconfiança, não teria por que se vingar.
Tinha muitas coisas que ela queria dizer. Mas não podia. Naquele momento a única coisa permitida, era a música no rádio:

Você diz que é um operário, sai em busca do salário
Pra poder me sustentar, qual o quê!
No caminho da oficina, há um bar em cada esquina
Pra você comemorar, sei lá o quê!
Sei que alguém vai sentar junto, você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias de quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol.

Não que a música tivesse algo a ver com eles, e não tinha.
Mas ela sempre assistiu filmes românticos da Seção da Tarde, e nesses filmes, quando a mocinha era abandonada surgia uma música do alem que era mantida até trocar de cena.
Já que o amor não existia, a tristeza não existia, pelo menos a música estava existindo.
Se alguém olhasse diria que ela tinha aceitado a noticia de maneira indiferente.
Mas só ela sabia o que estava sentindo.
Acendeu um cigarro e sentou-se no sofá ao lado do rádio antigo que ainda tocava estridente:

Vem a noite e mais um copo, sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar...

Repito, não era amor. Mas ela estava sofrendo, de uma maneira triste e sem valor, mas estava.
Saber que ele teria alguém, ou que teria uma futuro melhor que o dela doía muito. Sim, era uma grande forma de egoísmo, mas o egoísmo era tão fácil de ser sentido que se apoderou de seu corpo.
Quando percebeu, o cigarro havia virado pura cinza. Esticou o braço por cima do rádio e pegou um cigarro. Acendeu e neste ela prestou mais atenção.
Então. Por que? O que ela havia feito de errado.
Não, melhor nem perguntar.
“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”
É, a Clarice tinha razão. Melhor esquecer ele e tocar a vida em frente.

As horas passaram e acompanhada de um maço de cigarros ela passou a noite ouvindo música e olhando a foto dele em um porta-retrato em cima da mesinha, ela realmente não sabia que horas eram, mas também nem queria saber.
Quando, depois de uma miscelânea de músicas, tocou novamente:

Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto...

Aquela musica não era muito do seu agrado, mas como foi ela a unica testemunha de seu abandono, ela resolveu ouvir novamente. E na voz de Nara Leão, escrita por Chico Buarque, nunca podia ser ruim.
A campainha tocou, ela levantou, jogou o a bagana do cigarro no cinzeiro e foi abrir a porta.
Era ele, sujo, fedendo, com uma flor morta na mão.
Uma outra mulher não o aceitaria de volta. Mas ela se conhecia, e sabia que precisava dele.

Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão, qual o quê!



- Meu amor,eu sei que não faz nem um dia que eu sai daqui, mas é que... que... eu te amo, é que...eu mudei de idéia, não posso sair daqui. Eu preciso de ti do meu lado, me perdoa? Esquece o que eu te disse, por favor?

Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração

Ela voltou pro sofá, aumentou o volume do rádio e esperou ele entrar.

- Entra. Eu obviamente vou te aceitar de volta. Mas eu não te amo, eu só preciso de ti.

Ele ficou sério, respondeu:

- Eu também não te amo, também preciso de ti. – ela não se mexeu – Vamos dormir? Eu estou com muito sono, e creio que você também não dormiu nada.

Ela não disse uma única palavra, levantou e foi em direção ao quarto.

- Não vai desligar o rádio? – ele disse.

- Não, Nara ainda esta cantando.

Ela foi para o quarto e ele também

E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer? Qual o quê!
Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você.

Foi assim que Nara Leão e Chico Buarque presenciaram uma grande história de não-amor, uma grande história de pura necessidade.